terça-feira, 24 de março de 2009

MENINO SENTADO NA CANOA

O menino ficava sentado na canoa
Sob o sol quente do verão

O rio passava entre pedras
As lavadeiras lavavam roupa cantando

Contando histórias
Metendo as mãos na panela do dicumê

No céu de um azul de doer os olhos
Um bando de ariris fazia festa

Alzira de Nato dizia que era a chuva que estava perto
Lôi de Primitivo retrucava que era algazarra daqueles pássaros

O menino na canoa sorria com os pés mergulhados na àgua
Sonhando com a chuva

EIGHT DAYS WEEK

A vida
Era a sala de projeções
Do Cine do Povo
Salão de carnavais
E filmes americanos

Nada sabia da vida
Do mundo
Sangrando
Em vietnãs revoltas revoluções

A vida era um quintal
Uma bananeira
Um cinema com alto-falantes
Emitindo
A última dos Beatles

PROCISSÂO DO ENCONTRO

Um Cristo todo alquebrado
Irrompia a praça da igreja matriz

Do outro lado da praça o andor
Com Nossa Senhora vinha em direção ao filho

Quão piedosos os olhos daquela mulher

O encontro de mãe e filho comovia-me
Velas acesas iluminavam a sexta-feira da paixão

Os homens rezavam em voz alta
Meu coração de menino sentia uma enorme tristeza

FESTA DE SÃO JOÃO

No tempo que era menino
A noite de São João era a noite em que se dormia mais tarde

Ficávamos assando batata doce na beira da fogueira
olhando um solitário balão cruzar o céu de junho

A noite de São João
Era a noite mais fria do ano

A quadrilha do Formigueiro
Enchia o ar da cidade com seu anarriê

As pessoas sentadas na soleira da porta comiam biscoito de goma
Bebiam licor de jenipapo
Esboçavam uma intensa e provisória felicidade

Os mais velhos dançavam no forró de Dona Anida
No forró pé-de-serra do Santo Lenho
Nas quadrilhas cada uma mais colorida que a outra

Menino como eu
Soltava traque chuvinha biriba busca-pé
E dormia na beira da fogueira de São João

O FIO DA MEMÓRIA

O espelho d`àgua da memória
É um fio
De lembrança

Daquelas canoas no meio do mundo
Daquelas ruas batidas de sol
Daqueles homens remando a esperança

O fio da memória
Permanece guardado
Na cacimba do tempo

Como permanecem guardados
O anelim da saudade
A cantiga de roda
O vento que soprava na cumeeira

O espelho d`àgua da memória
É um rio em delírio
Em desvario de àguas e peixes

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

GARIMPO

Meu avô garimpava no rio
No embornal
Uma meia de pinga
Uma marmita de farofa
Palha para o fumo de rolo

Meu avô bateiava no rio
Dia a dia
Sol a sol

À noite ele manejava a máquina de projeção do cinema
Fred Astaire dançava na tela
Gina Lolobrígida tinha olhos estranhos e penetrantes
E Casinha Pequenina arrancou lágrimas de muita gente

Depois o cinema mudou de endereço
Vieram os filmes de kung fu

Meu avô morreu de complicações hepáticas
A televisão chegou e acabou com o cinema

O rio secou
E nem se usa mais garimpar com bateia

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

HISTÓRIA DE CANOAS E PEIXES

Como quem escreve na areia
Rabisco palavras nas àguas do rio

Tudo ali era sacro
Na paisagem de canoas e peixes

De noite deitava-me em cama de varas
Em travesseiros de paina

O escuro do mundo vinha
De fantasmas e mulas sem cabeças

Vinha nas histórias contadas
Pelas avós na hora de dormir

Memória que assalta
E que por um instante ilumina o tempo distante

A infância distante e nunca esquecida
Como as gotas das primeiras chuvas de verão

PAISAGEM PINTADA DE VERDE

Feliz é o sertão
Quando a nuvem chora

Os pés de mandacaru
Arvoram de verde

Arvoram-se
Os pés de palma
Os pés de juá
As plantinhas do chão

Os bichinhos do mato
Também arvoram-se

Os caracóis
As mariposas
As cigarras
Os pirilampos
As jias e os jirinos

A paisagem agora é lume
Folhas de pitombeiras maduras
Caindo
Na terra molhada de sol

A CIDADE E AS CANOAS

Minha cidade mistura-se às canoas
Ao vento que varre a orla do rio

Minha cidade é lama e barro das enchentes
É pedra preciosa no oco do chão

Minha cidade é areia branca de praia sem fim
É àgua ribeira sino de igreja rua de terra batida

Minha cidade é o sobrado colonial
Sob o sol das tardes de verão

Minha cidade é passado
Minha cidade é saudade

Minha cidade é quimera
Fotografia em sépia pendurada na parede

AS MAIS SIMPLES PALAVRAS

Minha poesia é simples
E cheia de palavras simples como

Vale peixe rio canoa
Pedra seixo barro areia

Terra planta àgua praia
Beira beirada barranco barranca

Remanso rebôjo ribeira ribanceira
Vida viola vereda varanda

Jenipapo graviola graveto gravatá
Presépio perau pitanga procissão

Chuva quintal vento argila
Remo escaler madrugada solidão

domingo, 9 de março de 2008